A Gaivota: O Drama da Juventude e do Amor
Para muitas culturas, a juventude é apreciada como um tempo de sonhar, acreditar no impossível, ter as mais longínquas ambições, de acreditar na vida e nutrir amores para em seguida abraçar o futuro, mas também tem seus dramas rebeldes, amorosos, alguns repletos de mágoa e rancor, uma série de altos e baixos. A vida em si pode ser tanto uma comédia quanto um drama ou uma tragédia, dependendo do ponto de vista de quem os vê, mas o que não muda é que a vida é o nosso palco feito para contarmos nossa história, e como seres humanos, também somos interpretados como símbolos, como A Gaivota.
O filme é na verdade, uma adaptação da obra teatral escrita pelo dramaturgo russo Anton Tchekov no início do século XX depois de se inspirar no caso entre um escritor casado e uma professora que foi um verdadeiro escândalo na época. A adaptação é estrelada por Billy Howle, Saoirse Roman, Elisabeth Moss, Corey Stoll, Annette Bening e Michael Zegen.
*Alerta de Spoiler*
Na Rússia de 1900, Arkadina é uma atriz veterana que parte rumo a uma casa de campo com o filho, Konstantin, um jovem aspirante a escritor e dramaturgo chamado por todos de Trepliov, para visitar seu irmão, Sorin. Durante a estadia na casa de campo, Arkadina traz consigo seu amante, o renomado escritor Boris Trigorin, e também recebe seus vizinhos. Dentre seus convidados está Masha, que desde jovem nutre um amor platônico não correspondido por Trepliov, o que a faz desenvolver uma depressão amorosa, que faz com que ela opte pelo uso constante de vestimentas pretas, esta porém, é muito desejada pelo professor local, Medvedenko.
Trepliov decide apresentar ao ciclo social de sua mãe uma peça de sua autoria, que será estrelada por uma jovem atriz humilde, Nina, que sonha em se tornar uma grande atriz do renomado Teatro de Moscou. Enquanto Trepliov nutre um intenso sentimento por ela, Nina acaba se apaixonando por Trigorin, com quem viverá um intenso relacionamento.
Escrita por Anton Tchekov, A Gaivota é muito elogiada por ser um dos primeiros textos teatrais que se afasta das convenções do teatro popular da época, e os conflitos internos vividos pelos personagens recebem muito mais importância do que a ação externa da peça em si fez com que a obra fosse marcada pela falta de eventos dramáticos de grande impacto e pela sua sutileza. Além disso, o protagonista Trepliov é visto por muitos como um Hamlet feito para a peça russa.
Com sua fórmula inovadora de criar personagens, Anton Tchekov, diferentemente de outros autores, não cria mocinhos e vilões caracterizados e marcantes (do ponto de vista tipicamente visto no cinema e no teatro), em vez disso, o escritor se aproveita da complexidade de seus personagens para inserir os sentimentos reais das pessoas: os personagens frequentemente falam sobre suas vidas e suas frustrações, mas a ação no palco é muitas vezes passiva. Essa característica contribui para o estilo introspectivo da obra e é uma das razões pelas quais ela se destaca do teatro mais tradicional da época, focado em enredos rápidos e cheios de ação. Para ele, o teatro deveria ser um espelho da vida, que fizesse o público refletir sobre suas ações e personalidades que podem facilmente identificar com os personagens da obra, já que seus integrantes são pessoas complexas marcadas por desejos contraditórios que modificam a intenção de suas ações.
Indo além da complexidade das personagens, A Gaivota possui um único cenário em comum: uma casa de campo à beira de um lago. Ela também aborda temas como amor não correspondido, depressão amorosa, frustrações e expectativas, relacionamentos tóxicos e o impacto profundo da realidade nos sonhos e idealizações de cada um. O título do filme-peça teatral também chama muito a atenção por conta de seu uso de metáforas: a gaivota em si, representa Nina, uma jovem livre que sonha em alcançar distantes horizontes como artista, sonho que se intensifica ainda mais quando se envolve com o escritor Trigorin, mas esse desejo não a livra de ter um destino trágico; na obra, Trepliov mata uma gaivota e a mostra a Nina, o que indica que talvez seu destino não seja o que ela tanto espera.
Na época de publicação, Anton Tchekov a definiu como “uma comédia, três papéis de mulher, seis para homens, quatro atos, uma paisagem (vista para um lago), muitas conversas sobre a literatura, um pouco de ação, um toque de amor”. Porém, quando foi ler seu texto para amigos atores de teatro em Moscou, foi vaiado e insultado pelo diretor, e surpreso, decidiu reescrever a peça inteira, mas se livra da censura por meio de uma carta-livre (uma espécie de documento que confirmava que o material não precisaria ser censurado).
Em seguida, A Gaivota foi encenada pela primeira vez em 1896 na cidade de São Petersburgo, sendo vaiada pelo público. No entanto, dois anos depois, a peça obteve grande sucesso depois de encenada novamente, o que garantiu que temporadas da peça fossem feitas por todo o território russo, passando inclusive pela capital Moscou e pela cidade de Taganrog. A obra Tchekoviana é também considerada uma peça revolucionária, pois marca a transição do teatro clássico para o moderno, influenciando futuros aclamados dramaturgos como Konstantin Stanislavski, que contribuiu para reformular o método de estudo a respeito da construção do teatro como conhecemos hoje e seus métodos de atuação e interpretação da dramaturgia. A obra também contribuiu para o desenvolvimento do realismo psicológico e da representação mais sincera das emoções humanas no palco.
A adaptação cinematográfica de A Gaivota só ganhou vida no século XXI, sob a direção de Michael Mayer, mas, apesar da expectativa, o filme foi recebido com críticas mistas, dividindo opiniões do público. No entanto, já havia uma versão anterior, datada de 1972, realizada na União Soviética, que permaneceu restrita aos países do Leste Europeu, quase como uma relíquia escondida do passado. Hoje, com o centenário da obra, A Gaivota permanece um espelho vívido da complexidade humana, refletindo com uma intensidade impressionante temas como paixão, frustração, esperança e o drama das feridas que o amor deixa em nossa alma. Sua narrativa, imortal, continua a ressoar profundamente, desafiando a sociedade a encarar as dores que nos definem e nos moldam.
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